quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A LENDA DO INTERIOR

Amigos, estive lendo literatura de cordel e me veio a inspiração para escrever o texto a seguir. Tive muito prazer em fazê-lo e espero que o tenham também em lê-lo. Grande abraço,

Neuman

Nas noites mais frias, dentre as almas mais geladas
Encontrava-se aquele ser, cuja vida malfadada
Conduzia seus passos na sombria madrugada

Só, por entre sombras, errava a criatura
Que desistira da vida, dentre tantas amarguras
Pensava sempre na morte, tanto a minha quanto a sua

Mas coragem não o move, só o medo que possui
E de todos os lugares, inclusive os que não fui
Nunca ouvi tanta estória, que a um homem atribuem

Uma lenda, quase um mito
Quando lembro sei o que sinto
Eu vi, juro, não minto!

Foi em um remoto interior
Que vivi aquele horror
Um encontro em dissabor

Era em maio, em festa santa
Não me lembro de qual manta
Já faz tempo, até me espanta

Senhoras, velhos, crianças,
Reunidos com esperança
Isso guardo na lembrança

Bandas, moças, fogos de artifício
Escondiam o indício
Do momento de suplício

Estava distraído, quase ébrio, aturdido
Confundindo meus sentidos
Fui ficando retraído

Então me indagou o vigário
Meu amigo temporário
Em um tom autoritário:

“Meu rapaz, o que tu sentes?
O que passa pela mente,
deste ser tão imprudente?”

“bebeste como um pedinte
quaisquer olhos que te fite
vê o mal que lhe atinge”

Respondi-lhe com impropérios
Depois com um ar de mistério
Comecei a dar meus passos, me perdi sem rumo sério

Foi no meio do caminho que encontrei aquela velha
Que sem uma simpatia me olhou um tanto séria
E narrou uma estória de terror e de miséria:

“Em meados deste tempo, numa festa como esta
Um encontro de amor, duas vidas bem modestas
Transformou-se em tragédia e hoje mora na floresta

Era um jovem bem bonito, encantou-se com uma moça
Conheceram-se na festa; o amor surgiu com força
Mesmo com o que ocorreu, até hoje tem quem torça

Ela, uma linda morena, a mais bela da cidade
Seu encanto era tanto, na ingênua e doce idade
Seu olhar malicioso, mas não carregava maldade

Ele, rapaz honesto, forte e trabalhador
Tinha um sonho em mente: queria ser doutor
E nada o fazia tremer, apenas aquele amor

O pai dela era ciumento, “Coroné” Paulo Nascimento
Prendeu a menina em casa, impôs-lhe um tormento
Era muito ambicioso; não aprovou o casamento

Combinaram então fugir, com a ajuda da empregada
Ia ser naquela noite, no meio da madrugada
Uma pedra na janela; uma corda amarrada

“Coroné” desconfiou; armou logo uma cilada
Pôs jagunços bem armados vigiando a estrada
Torturou a empregada com chicotes e facadas

O casal fugiu depressa, seu caminho era a fé
E quando se achavam salvos, o homem e a mulher
Foram presos em tocaia pelo próprio “Coroné”

O vilão ficou possesso e lançado em sua ira
Sacou do cinturão brilhante uma enorme carabina
Mirou-a para o casal e atirou só na menina

O rapaz desconsolado, ficou louco, atordoado
O pai da garota ordenou que ele fosse espancado
Um jagunço à pancada o deixou desfigurado

Todos acharam a morte do garoto evidente
Mas ele sobreviveu, se vingou daquela gente
Matou todos sem pudor, e depois ficou demente

Hoje vive nestes matos e em sua insanidade
Já matou muitas pessoas, gente de toda idade
Já matou velhos, crianças e rapazes da cidade

E por isso te aconselho, não te andes por aí
Com a noite assim escura, pode ele estar aqui
E não quero ver um moço tão formoso assim sumir”

Depois de ouvir a lenda, perdido naquela cena
Não pude conter meu riso: gargalhei como uma hiena
E a velha me olhou com um semblante de pena

Retomei o meu caminho, sem saber aonde ir
Procurei pela senhora que acabara de sumir
Em um piscar de olhos, como se nunca estivesse ali

Pensei no infeliz casal e fiquei meio deprimido
Seria verdade a lenda que a pouco tinha ouvido?
Fui pensando nos detalhes: “daria um belo livro”!

Sem perceber fui me afastando daquela pequena cidade
Não tinha mais nem um dinheiro, apenas a identidade
E a foto da minha noiva, carregada de saudade

Era também morena, como aquela da estória
Era também bonita, parecida uma joia
E naquele momento ficou presa na memória

Pensei em todos os momentos que ela esteve junto a mim
Botei a foto no bolso da camisa de cetim
E senti um calafrio que parecia não ter fim

De repente percebi que estava perdido
Afastei-me da cidade, só ouvia o zunido
Da festa da padroeira daquele povo esquecido

Ao tentar voltar e retomar o caminho
Notei naquele instante que estava ali sozinho
E ouvi estranho som que me causou arrepio

O mato ao meu redor foi ficando alvoroçado
Um grito seco e cruel fui ouvindo ao meu lado
Um bando de aves voou em movimentos assustados

Senti que fiquei pálido, o couro suando frio
Não podia mais conter o intenso calafrio
Meus olhos se encheram d’água, como gotas de um rio

Vi que alguma coisa vinha em minha direção
Tentei correr, mas não pude; virei e caí no chão
Nunca me imaginei naquela situação

Ouvi mais algumas vezes o grito aterrador
Minhas pernas não mexiam no instante de horror
Comecei a rezar em sussurros pro meu anjo protetor

Quando abri os olhos, vi sair do matagal
A criatura mais feia, parecia um animal
Tinha estrutura de homem, mas não era um ser normal

Era alto, estava nu
Em seus olhos o medo cru
Como os ventos gelados do sul

Seu rosto estava desfigurado
Como a lenda que eu havia escutado
Em minha crença estava errado

Realmente existia
Criatura tão sombria
Que do mato migraria

Sem nenhuma hesitação
Atirou-se em mim então
Com a fúria de um leão

Seu grito era de abalar
Sei, queria me matar
Talvez para poder se vingar

De seu destino medonho
Que num momento tristonho
Destruiu seu grande sonho

Tentei lançar algum grito
Mas por estar um tanto aflito
Nada por mim foi dito

A criatura de unhas enormes
Com seus “grunhidos” disformes
Rasgou-me de modo uniforme

Senti sangue em minha boca
E o homem de fúria louca
Lacerou a minha roupa

A foto de minha noiva foi a minha salvação
Com meu bolso rasgado a foto caiu no chão
E o ser abominável foi tomado em comoção

Ao ver a linda morena lembrou-se de alguma cena
E a fúria arrebatada foi ficando mais amena
Senti que estava salvo do tenebroso problema

Banhado seus olhos em lágrimas lembrou-se da namorada
Que havia sido morta pelo pai em emboscada
E que o jogou em vida amaldiçoada

Fui encontrado no outro dia; eu havia desmaiado
Não lembrava com detalhes o que foi passado
Só sei que estava com o corpo todo ensanguentado

Comecei a contar o que aos poucos recordava
Uns olhavam assustados; outros com uma leve risada
Vi ao fundo me olhando a velha da noite passada

Bradei: “falem com aquela senhora que me viu antes dos danos”
Alguém me respondeu: “deve estar havendo enganos
Esta velha é uma louca, já não fala há muitos anos”

No decorrer do dia foi-se avivando minha lembrança
Outras pessoas contaram mais estórias de matança
Daquela triste figura e de sua triste herança

Hoje são fortes as memórias desta estória de terror
Quando conto fazem cara ou de graça ou de pavor
Mas só sabe quem viveu a lenda do interior


Neuman Guimarães

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