quinta-feira, 10 de março de 2011

Muda para o mundo mudar

Muda para o mundo mudar!
Muda: pequena planta que acaba de brotar;
Muda a dor no peito que insiste em maltratar,
Muda a miséria que não para de vingar.
Muda: a menina que sonhava em falar;
Muda a cabeça de quem pensa em se matar,
Muda a tempestade que começa a dissipar.
Muda: a jornada que não para de andar;
Muda o sentimento de quem não quer acordar,
Muda o turno para o outro descansar.
Muda: a maneira da cobra se trocar;
Muda que é o sinal que está em tempo de mudar,
Muda para casa que acaba de comprar.
Muda: são as roupas colocadas para lavar;
Muda a cara feia de quem gosta de brigar,
Muda a vestimenta para a hora do jantar.
Muda: o animal que já cansou de carregar;
Muda a água da plantinha do altar,
Muda a sensação de que não vamos mais ganhar.
Muda: que é apenas o efeito de mudar;
Muda o carro velho que não para de quebrar,
Muda a solução que não consegue acertar.
Muda: trocar algo que está fora de lugar;
Muda a idade quando o aniversário passar,
Muda a tristeza e põe alegria em seu lugar.
Muda para o mundo mudar!

Neuman Guimarães

sábado, 6 de novembro de 2010

Pecados

Talvez por ser pastor, Antônio Cláudio era obcecado pelos pormenores da Bíblia. Mas nada o impressionava mais do que os sete pecados capitais. Era fácil encontrá-lo discorrendo sobre este tema. No entanto, seus seguidores já não mais sentiam encantamento com as tão bem colocadas palavras deste sacerdote protestante. Achavam que ele batia em demasia em uma única tecla; ou melhor, em sete teclas. Mas o assunto o intrigava e fascinava. Passava noites a ouvir corujas e estudar exaustiva e minuciosamente cada um dos pecados.
Sua família já não o conhecia. Na verdade, Antônio já nem se lembrava da voz e do gosto de sua esposa. Seus filhos o ignoravam com a naturalidade de quem vê todo dia um móvel velho no canto da sala, sem lembrar que este existe. Mas o sentimento de rejeição nem mesmo brotava na mente do pastor; ele expelia o cotidiano como quem joga fora um bagaço de laranja.
Em seu templo, as ovelhas tramavam uma troca de líder. As beatas achavam que o mentor espiritual estava possuído pelo “coisa ruim”, e que precisava ser exorcizado imediatamente. Aos poucos, este ignorante sentimento começou a se multiplicar com um ímpeto inexplicável, como uma cólera sem controle, e os “irmãos” resolveram tomar uma providência.
Em “noite de cura”, como era chamado o ritual de purificação do culto, os integrantes daquela comunidade evangélica determinaram que a salvação do pastor não poderia sofrer nem mais um dia de retardamento. Não era possível que uma pessoa sapiente como ele continuasse com aquela ideia fixa, esquecendo-se de suas obrigações religiosas e matrimoniais; esquecendo-se quem era e para que paraíso conduziria seu rebanho.
Ao chegar, como sempre mergulhado em indagações e pensamentos fugazes, Antônio Cláudio percebeu lentamente uma movimentação estranha, singular, que inquietou sua alma. No entanto, distraiu-se novamente com suas reflexões e continuou a preparação para a pregação daquela noite. Ao se colocar em seu lugar, foi agarrado bruscamente por dois homens que estavam em sua retaguarda. Quando olhou para o semblante das pessoas que estavam no local, percebeu um ar de ódio e prazer que já havia presenciado em outras oportunidades e percebeu imediatamente o que estava prestes a ocorrer. Ao primeiro vacilo de seus algozes, desvencilhou-se de seus opressores, correu, tropeçando nos pedestais e microfones do palco e jogou-se, como um louco suicida, pela janela do templo. Como a queda não ultrapassava quatro metros, sofreu apenas uma leve torção, o que não o impediu de entrar em seu luxuoso carro e fugir, surpreso, com o rosto quente banhado no frio suor do medo.
No caminho para casa, pensava na esposa como há muito tempo não fazia, ao tempo em que a adrenalina diminuía seu pulsante ritmo. Pensava em abraçá-la. Como um porto naquele momento de tempestade, ela era agora seu único alicerce. Pensou também em seu orgulho, que no momento estava em frangalhos, mas respirou fundo e tentou não sucumbir a este que considerava um dos mais podres dos sete pecados.
Chegando ao seu lar, entrou de súbito, como se procurasse o antídoto de um veneno que estava prestes a tomar seu organismo. Golpeou com toda força a porta de seu quarto, deparando-se com uma cena que jamais poderia fertilmente imaginar: sua mulher, nua, com um desconhecido, na cama de seus sonhos e pesadelos. Cego de fúria, golpeou fatalmente o amante com um pesado abajur que se encontrava próximo. Ao perceber o falecimento daquela impotente figura, os olhos da traidora arregalaram-se e as lágrimas desceram junto com o pavor. Seu marido simplesmente balbuciou: finalmente entendi a ira!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Meu haikai de sete versos

Tudo
muda
mesmo
que
o
tempo
dure

Tudo
passa
mesmo
que
o
tempo
faça

Tudo
crê
mesmo
para
quem
não


Tudo
diz
mesmo
para
quem
não
ouve

Tudo
é
mesmo
para
quem
não
quer

Tudo
faz
mesmo
para
quem
quer
mais



Tudo
ama
mesmo
para
quem
não
chora

Tudo
voa
mesmo
para
quem
não
sonha

INVOLUÇÃO

Procuro sempre fugir do saudosismo, pois acredito que nada pode parar; o mundo tem que estar evoluindo a cada segundo. Mas por que será que tenho a sensação de que em alguns aspectos estamos vivendo uma “involução”? Principalmente no que tange ao comportamento humano em relação aos seus pares. Lembro-me de como as pessoas se tratavam e se relacionavam no meu tempo de criança e tenho a impressão de que hoje, em alguns pontos, os seres humanos caminham para trás. Posso colocar como exemplo o respeito dedicado aos mais velhos, aos pais, professores... Não se questionava a experiência de um pai, pelo menos não da forma agressiva como acontece atualmente. Não se agredia fisicamente a um professor. Acho que até as brigas de colegas na escola eram mais inocentes. Claro que em certos aspectos o homem evoluiu: posso citar o crescimento da consciência ecológica (ainda que timidamente). No entanto, não consigo deixar de me perguntar onde é que estamos errando.
Óbvio que existem diversas causas para a agressividade que vivenciamos, mas vejo a família como primeiro ponto a ser analisado e discutido. Com o ritmo frenético da vida, muitos pais não conseguem acompanhar de perto o desenvolvimento emocional dos filhos. Neste ponto, as questões sociais e financeiras pesam muito. Não se pode deixar de mencionar também a facilidade com que as informações são transmitidas, principalmente devido à internet; o que a princípio seria uma coisa positiva, acaba tornando-se uma preocupação, pois muitas crianças e adolescentes (e adultos também) ainda não têm a maturidade necessária para filtrar o que é bom e o que é ruim.
Espero não estar exagerando, e confesso que ainda estou longe de achar soluções para a questão. O que pretendo aqui é que pais, filhos, educadores, membros da sociedade organizada reflitam um pouco sobre seu comportamento e tirem suas próprias conclusões: estamos ou não em um processo de “involução” em nossas relações?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A LENDA DO INTERIOR

Amigos, estive lendo literatura de cordel e me veio a inspiração para escrever o texto a seguir. Tive muito prazer em fazê-lo e espero que o tenham também em lê-lo. Grande abraço,

Neuman

Nas noites mais frias, dentre as almas mais geladas
Encontrava-se aquele ser, cuja vida malfadada
Conduzia seus passos na sombria madrugada

Só, por entre sombras, errava a criatura
Que desistira da vida, dentre tantas amarguras
Pensava sempre na morte, tanto a minha quanto a sua

Mas coragem não o move, só o medo que possui
E de todos os lugares, inclusive os que não fui
Nunca ouvi tanta estória, que a um homem atribuem

Uma lenda, quase um mito
Quando lembro sei o que sinto
Eu vi, juro, não minto!

Foi em um remoto interior
Que vivi aquele horror
Um encontro em dissabor

Era em maio, em festa santa
Não me lembro de qual manta
Já faz tempo, até me espanta

Senhoras, velhos, crianças,
Reunidos com esperança
Isso guardo na lembrança

Bandas, moças, fogos de artifício
Escondiam o indício
Do momento de suplício

Estava distraído, quase ébrio, aturdido
Confundindo meus sentidos
Fui ficando retraído

Então me indagou o vigário
Meu amigo temporário
Em um tom autoritário:

“Meu rapaz, o que tu sentes?
O que passa pela mente,
deste ser tão imprudente?”

“bebeste como um pedinte
quaisquer olhos que te fite
vê o mal que lhe atinge”

Respondi-lhe com impropérios
Depois com um ar de mistério
Comecei a dar meus passos, me perdi sem rumo sério

Foi no meio do caminho que encontrei aquela velha
Que sem uma simpatia me olhou um tanto séria
E narrou uma estória de terror e de miséria:

“Em meados deste tempo, numa festa como esta
Um encontro de amor, duas vidas bem modestas
Transformou-se em tragédia e hoje mora na floresta

Era um jovem bem bonito, encantou-se com uma moça
Conheceram-se na festa; o amor surgiu com força
Mesmo com o que ocorreu, até hoje tem quem torça

Ela, uma linda morena, a mais bela da cidade
Seu encanto era tanto, na ingênua e doce idade
Seu olhar malicioso, mas não carregava maldade

Ele, rapaz honesto, forte e trabalhador
Tinha um sonho em mente: queria ser doutor
E nada o fazia tremer, apenas aquele amor

O pai dela era ciumento, “Coroné” Paulo Nascimento
Prendeu a menina em casa, impôs-lhe um tormento
Era muito ambicioso; não aprovou o casamento

Combinaram então fugir, com a ajuda da empregada
Ia ser naquela noite, no meio da madrugada
Uma pedra na janela; uma corda amarrada

“Coroné” desconfiou; armou logo uma cilada
Pôs jagunços bem armados vigiando a estrada
Torturou a empregada com chicotes e facadas

O casal fugiu depressa, seu caminho era a fé
E quando se achavam salvos, o homem e a mulher
Foram presos em tocaia pelo próprio “Coroné”

O vilão ficou possesso e lançado em sua ira
Sacou do cinturão brilhante uma enorme carabina
Mirou-a para o casal e atirou só na menina

O rapaz desconsolado, ficou louco, atordoado
O pai da garota ordenou que ele fosse espancado
Um jagunço à pancada o deixou desfigurado

Todos acharam a morte do garoto evidente
Mas ele sobreviveu, se vingou daquela gente
Matou todos sem pudor, e depois ficou demente

Hoje vive nestes matos e em sua insanidade
Já matou muitas pessoas, gente de toda idade
Já matou velhos, crianças e rapazes da cidade

E por isso te aconselho, não te andes por aí
Com a noite assim escura, pode ele estar aqui
E não quero ver um moço tão formoso assim sumir”

Depois de ouvir a lenda, perdido naquela cena
Não pude conter meu riso: gargalhei como uma hiena
E a velha me olhou com um semblante de pena

Retomei o meu caminho, sem saber aonde ir
Procurei pela senhora que acabara de sumir
Em um piscar de olhos, como se nunca estivesse ali

Pensei no infeliz casal e fiquei meio deprimido
Seria verdade a lenda que a pouco tinha ouvido?
Fui pensando nos detalhes: “daria um belo livro”!

Sem perceber fui me afastando daquela pequena cidade
Não tinha mais nem um dinheiro, apenas a identidade
E a foto da minha noiva, carregada de saudade

Era também morena, como aquela da estória
Era também bonita, parecida uma joia
E naquele momento ficou presa na memória

Pensei em todos os momentos que ela esteve junto a mim
Botei a foto no bolso da camisa de cetim
E senti um calafrio que parecia não ter fim

De repente percebi que estava perdido
Afastei-me da cidade, só ouvia o zunido
Da festa da padroeira daquele povo esquecido

Ao tentar voltar e retomar o caminho
Notei naquele instante que estava ali sozinho
E ouvi estranho som que me causou arrepio

O mato ao meu redor foi ficando alvoroçado
Um grito seco e cruel fui ouvindo ao meu lado
Um bando de aves voou em movimentos assustados

Senti que fiquei pálido, o couro suando frio
Não podia mais conter o intenso calafrio
Meus olhos se encheram d’água, como gotas de um rio

Vi que alguma coisa vinha em minha direção
Tentei correr, mas não pude; virei e caí no chão
Nunca me imaginei naquela situação

Ouvi mais algumas vezes o grito aterrador
Minhas pernas não mexiam no instante de horror
Comecei a rezar em sussurros pro meu anjo protetor

Quando abri os olhos, vi sair do matagal
A criatura mais feia, parecia um animal
Tinha estrutura de homem, mas não era um ser normal

Era alto, estava nu
Em seus olhos o medo cru
Como os ventos gelados do sul

Seu rosto estava desfigurado
Como a lenda que eu havia escutado
Em minha crença estava errado

Realmente existia
Criatura tão sombria
Que do mato migraria

Sem nenhuma hesitação
Atirou-se em mim então
Com a fúria de um leão

Seu grito era de abalar
Sei, queria me matar
Talvez para poder se vingar

De seu destino medonho
Que num momento tristonho
Destruiu seu grande sonho

Tentei lançar algum grito
Mas por estar um tanto aflito
Nada por mim foi dito

A criatura de unhas enormes
Com seus “grunhidos” disformes
Rasgou-me de modo uniforme

Senti sangue em minha boca
E o homem de fúria louca
Lacerou a minha roupa

A foto de minha noiva foi a minha salvação
Com meu bolso rasgado a foto caiu no chão
E o ser abominável foi tomado em comoção

Ao ver a linda morena lembrou-se de alguma cena
E a fúria arrebatada foi ficando mais amena
Senti que estava salvo do tenebroso problema

Banhado seus olhos em lágrimas lembrou-se da namorada
Que havia sido morta pelo pai em emboscada
E que o jogou em vida amaldiçoada

Fui encontrado no outro dia; eu havia desmaiado
Não lembrava com detalhes o que foi passado
Só sei que estava com o corpo todo ensanguentado

Comecei a contar o que aos poucos recordava
Uns olhavam assustados; outros com uma leve risada
Vi ao fundo me olhando a velha da noite passada

Bradei: “falem com aquela senhora que me viu antes dos danos”
Alguém me respondeu: “deve estar havendo enganos
Esta velha é uma louca, já não fala há muitos anos”

No decorrer do dia foi-se avivando minha lembrança
Outras pessoas contaram mais estórias de matança
Daquela triste figura e de sua triste herança

Hoje são fortes as memórias desta estória de terror
Quando conto fazem cara ou de graça ou de pavor
Mas só sabe quem viveu a lenda do interior


Neuman Guimarães

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Primeiros passos

Paula vivia um momento difícil em sua vida. Típico da adolescência. Mas sua percepção de mundo era precoce. Ela podia discernir com facilidade aquele instante; sabia que era uma fase, que era passageiro. Porém o medo era seu companheiro. Mais presente do que os irmãos ou os colegas da escola. Na realidade, ela se destacava entre os demais de seu grupo social pela inteligência e surpreendente sapiência. Isso, de alguma forma, a afastava das pessoas. Seus talentos assustavam a todos. A ela também.

O que mais impressionava naquela garota era sua busca pelo saber, sua vontade de descobrir, de ultrapassar barreiras. Só que nada feito por Paula convertia-se em felicidade. Ela era arguta, curiosa, inteligente... e infeliz.

Sua mãe era sua melhor amiga, apesar de não manterem uma comunicação contínua. Cláudia também era observadora e há muito havia percebido que sua filha ainda não tinha encontrado o que procurava, e pior, não sabia o que estava procurando. Contatou certa vez um psicólogo, doutor Augusto, muito famoso na pequena cidade onde moravam. Paula não aceitou bem a idéia, mas com o tempo passou a conter sua rebeldia. Ela começava a gostar daquela conversa que parecia despretensiosa, sem nunca ter sido. No entanto, ainda faltava algo para achar o caminho da felicidade.

Foi então que a menina começou a sentir os efeitos da puberdade. A partir deste momento fixou um pensamento: o que faltava na sua vida era um amor. Queria experimentar aquele sentimento que fazia suas colegas ficarem com cara de bobas, segundo ela mesma descrevia. Parecia que um namorado seria a solução para seus problemas. Decidiu fazer mudanças em seu vestuário, o que causou certa estranheza em Cláudia. Maquiagens, sapatos, roupas, eram estes os objetos de sua cobiça agora. Paula estava virando uma mulher.

Para sua mãe foi uma agradável surpresa. Sua filha era bonita; muito bonita. Escondia-se antes atrás de roupas escuras e cabelos desgrenhados. Passou a chamar atenção por onde passava. Na escola não foi diferente. Contudo, aquela garota que a pouco era uma criança ainda sentia-se totalmente insegura quando o assunto era relacionamentos. Sua aptidão para matemática e filosofia ainda não havia convertido em sua vida social. Apesar da beleza, seus colegas ainda a achavam “estranha”; ela ainda estava deslocada entre os de sua idade. Seus namoros sempre começavam com data para acabar.

Com o passar dos anos as coisas não mudaram muito. Paula era agora uma mulher elegante, linda e inteligente, mas extremamente insegura. Seus relacionamentos estavam sempre fadados ao fracasso. Havia mudado para uma cidade maior e conseguido um emprego de alto nível, mas sua vida amorosa não decolava. Costumava lembrar-se dos conselhos do doutor Augusto, que acabou tornando-se uma figura marcante em sua juventude. Lembrava-se com nostalgia daquelas conversas e conselhos. Ele falava sempre nos primeiros passos e coisas parecidas, mas na realidade ela nunca entendera com clareza as advertências daquele homem. Naquela época não tinha maturidade para entendê-las. No dado instante, não tinha tempo.

A monotonia daquela rotina foi quebrada quando conheceu um rapaz que, de certa forma, iria mudar sua vida. Era um advogado recém contratado na empresa em que ela trabalhava. Elegante e bonito, era cobiçado pelas mulheres do local. No entanto, após saber da fama de garota complicada que era atribuída a Paula, o rapaz resolveu que queria sair com ela; queria possuí-la. Começou então a investir naquele futuro namoro.

Não demorou muito e Paula acabou seduzida pelos encantos do causídico. Não havia sido tarefa difícil, pois ela era uma mulher frágil e solitária. O advogado soube penetrar em suas emoções.

Durante um mês os dois saíram, divertiram-se, e ela passou a acreditar que desta vez encontrara o amor. Mas o medo ainda tomava conta de sua alma, e Paula não se entregou de vez àquela paixão. De alguma maneira, sua reserva a fez se sentir forte como nunca, e seus sentimentos tornaram-se melhor controlados. Passou a perceber como funcionava seu coração e como conduzir aquela ligação amorosa.

Seu mundo havia se transformado. Agora Paula sabia as direções que deveria tomar. Todavia, um fato iria alterar o rumo que sua vida parecia ter encontrado. Em uma noite chuvosa, após seu carro ter quebrado depois de um cansativo dia de trabalho, resolveu prosseguir a pé, pois estava já próxima de casa. Ao adentrar em seu bairro, viu uma cena que antes a deixaria deprimida, mas que lhe causou outra reação. Seu namorado estava embaixo de uma marquise, em fervorosos beijos com uma linda moça.

A ira tomou conta de Paula após perceber que ele a havia visto e esboçou, como se dirigido a ela, um sorriso que ultrapassava o sarcasmo e a ironia. Partiu para cima dele, pronta para desferir-lhe um golpe certeiro na face. Ele segurou o braço da agressora e a arremessou com força de encontro ao chão coberto de lama. O advogado saiu andando calmamente, puxando a garota que antes beijava e que agora se esforçava para entender o que estava acontecendo.

Paula ficou incontáveis minutos no chão, sentada, sentindo a chuva forte em suas costas e a lama em seu corpo. Não chorou nem deixou que a raiva tomasse conta de si. Apenas ficou parada, pensando em qual seria seu próximo passo. De súbito, uma mão senil estendeu-se a ela. Um senhor com uma negra capa de chuva e um vistoso guarda-chuva ajudou-a a levantar-se. Quanto ela o olhou nos olhos, percebeu que conhecia aquela figura. Era o doutor Augusto, que, por capricho do destino, havia se mudado para um bairro vizinho e também fora surpreendido pela chuva. Ele havia presenciado toda a cena. Os dois entrelaçaram os braços e começaram a caminhar. Augusto a olhou com ternura e disse:

- Você deu apenas o primeiro passo. Agora você já sabe o caminho!

sábado, 24 de julho de 2010

Radical

Praia do Futuro, final de tarde, alguns jovens jogando futebol. Peleja encerrada, sentam alguns à beira da maré, olhando o horizonte como a filosofar. São todos rapazes fortes, realmente atletas; não se conhecem muito bem, a não ser pelo encontro semanal proporcionado pelo futebol. Nunca pararam para uma conversa prolongada, mas no momento pareciam velhos confidentes. A paz que a natureza proporcionava naquele instante era indescritível.
Nesta contemplação, começaram a falar de seus esportes favoritos:
- Tenho praticado paraquedismo... a sensação de liberdade é algo que não consigo passar em palavras! Vocês precisam experimentar. Quando salto naquele espaço azul, parece que estou tocando na mão de Deus!
Outro rapaz, antes distraído, começou a se interessar pelo assunto:
- Então você também é um atleta radical! Eu tenho grande paixão por este tipo de esporte. Atualmente estou fazendo “rapel”... eu e mais alguns colegas iremos neste fim de semana. Alguém se habilita?
- Bom, eu não vou poder – respondeu um novo integrante do papo. Tomei um tombo praticando “down hill”; estou com o ombro um pouco dolorido... não viram o frango que tomei na pelada? Foi por causa disso.
- Certo, acredito – brincou um dos jogadores com um sorriso irônico.
- Eu gosto do alpinismo – entrou outro na conversa - me sinto o homem mais forte do mundo quanto consigo vencer um grande desafio.
Neste tema transcorreram-se horas. No entanto, havia um dos homens que não tinha pronunciado uma só palavra, mas contemplava o feito descrito por cada um com uma atenção hipnotizante e um brilho interessante nos olhos. Em dado momento, seus companheiros perceberam seu silêncio e o interpelaram:
- E você, amigo, não pratica esportes radicais?
- Pratico sim: sou professor de história em uma escola Estadual.
Todos se entreolharam e após alguns segundos balançaram a cabeça em sinal de concordância.