sábado, 6 de novembro de 2010

Pecados

Talvez por ser pastor, Antônio Cláudio era obcecado pelos pormenores da Bíblia. Mas nada o impressionava mais do que os sete pecados capitais. Era fácil encontrá-lo discorrendo sobre este tema. No entanto, seus seguidores já não mais sentiam encantamento com as tão bem colocadas palavras deste sacerdote protestante. Achavam que ele batia em demasia em uma única tecla; ou melhor, em sete teclas. Mas o assunto o intrigava e fascinava. Passava noites a ouvir corujas e estudar exaustiva e minuciosamente cada um dos pecados.
Sua família já não o conhecia. Na verdade, Antônio já nem se lembrava da voz e do gosto de sua esposa. Seus filhos o ignoravam com a naturalidade de quem vê todo dia um móvel velho no canto da sala, sem lembrar que este existe. Mas o sentimento de rejeição nem mesmo brotava na mente do pastor; ele expelia o cotidiano como quem joga fora um bagaço de laranja.
Em seu templo, as ovelhas tramavam uma troca de líder. As beatas achavam que o mentor espiritual estava possuído pelo “coisa ruim”, e que precisava ser exorcizado imediatamente. Aos poucos, este ignorante sentimento começou a se multiplicar com um ímpeto inexplicável, como uma cólera sem controle, e os “irmãos” resolveram tomar uma providência.
Em “noite de cura”, como era chamado o ritual de purificação do culto, os integrantes daquela comunidade evangélica determinaram que a salvação do pastor não poderia sofrer nem mais um dia de retardamento. Não era possível que uma pessoa sapiente como ele continuasse com aquela ideia fixa, esquecendo-se de suas obrigações religiosas e matrimoniais; esquecendo-se quem era e para que paraíso conduziria seu rebanho.
Ao chegar, como sempre mergulhado em indagações e pensamentos fugazes, Antônio Cláudio percebeu lentamente uma movimentação estranha, singular, que inquietou sua alma. No entanto, distraiu-se novamente com suas reflexões e continuou a preparação para a pregação daquela noite. Ao se colocar em seu lugar, foi agarrado bruscamente por dois homens que estavam em sua retaguarda. Quando olhou para o semblante das pessoas que estavam no local, percebeu um ar de ódio e prazer que já havia presenciado em outras oportunidades e percebeu imediatamente o que estava prestes a ocorrer. Ao primeiro vacilo de seus algozes, desvencilhou-se de seus opressores, correu, tropeçando nos pedestais e microfones do palco e jogou-se, como um louco suicida, pela janela do templo. Como a queda não ultrapassava quatro metros, sofreu apenas uma leve torção, o que não o impediu de entrar em seu luxuoso carro e fugir, surpreso, com o rosto quente banhado no frio suor do medo.
No caminho para casa, pensava na esposa como há muito tempo não fazia, ao tempo em que a adrenalina diminuía seu pulsante ritmo. Pensava em abraçá-la. Como um porto naquele momento de tempestade, ela era agora seu único alicerce. Pensou também em seu orgulho, que no momento estava em frangalhos, mas respirou fundo e tentou não sucumbir a este que considerava um dos mais podres dos sete pecados.
Chegando ao seu lar, entrou de súbito, como se procurasse o antídoto de um veneno que estava prestes a tomar seu organismo. Golpeou com toda força a porta de seu quarto, deparando-se com uma cena que jamais poderia fertilmente imaginar: sua mulher, nua, com um desconhecido, na cama de seus sonhos e pesadelos. Cego de fúria, golpeou fatalmente o amante com um pesado abajur que se encontrava próximo. Ao perceber o falecimento daquela impotente figura, os olhos da traidora arregalaram-se e as lágrimas desceram junto com o pavor. Seu marido simplesmente balbuciou: finalmente entendi a ira!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Meu haikai de sete versos

Tudo
muda
mesmo
que
o
tempo
dure

Tudo
passa
mesmo
que
o
tempo
faça

Tudo
crê
mesmo
para
quem
não


Tudo
diz
mesmo
para
quem
não
ouve

Tudo
é
mesmo
para
quem
não
quer

Tudo
faz
mesmo
para
quem
quer
mais



Tudo
ama
mesmo
para
quem
não
chora

Tudo
voa
mesmo
para
quem
não
sonha

INVOLUÇÃO

Procuro sempre fugir do saudosismo, pois acredito que nada pode parar; o mundo tem que estar evoluindo a cada segundo. Mas por que será que tenho a sensação de que em alguns aspectos estamos vivendo uma “involução”? Principalmente no que tange ao comportamento humano em relação aos seus pares. Lembro-me de como as pessoas se tratavam e se relacionavam no meu tempo de criança e tenho a impressão de que hoje, em alguns pontos, os seres humanos caminham para trás. Posso colocar como exemplo o respeito dedicado aos mais velhos, aos pais, professores... Não se questionava a experiência de um pai, pelo menos não da forma agressiva como acontece atualmente. Não se agredia fisicamente a um professor. Acho que até as brigas de colegas na escola eram mais inocentes. Claro que em certos aspectos o homem evoluiu: posso citar o crescimento da consciência ecológica (ainda que timidamente). No entanto, não consigo deixar de me perguntar onde é que estamos errando.
Óbvio que existem diversas causas para a agressividade que vivenciamos, mas vejo a família como primeiro ponto a ser analisado e discutido. Com o ritmo frenético da vida, muitos pais não conseguem acompanhar de perto o desenvolvimento emocional dos filhos. Neste ponto, as questões sociais e financeiras pesam muito. Não se pode deixar de mencionar também a facilidade com que as informações são transmitidas, principalmente devido à internet; o que a princípio seria uma coisa positiva, acaba tornando-se uma preocupação, pois muitas crianças e adolescentes (e adultos também) ainda não têm a maturidade necessária para filtrar o que é bom e o que é ruim.
Espero não estar exagerando, e confesso que ainda estou longe de achar soluções para a questão. O que pretendo aqui é que pais, filhos, educadores, membros da sociedade organizada reflitam um pouco sobre seu comportamento e tirem suas próprias conclusões: estamos ou não em um processo de “involução” em nossas relações?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A LENDA DO INTERIOR

Amigos, estive lendo literatura de cordel e me veio a inspiração para escrever o texto a seguir. Tive muito prazer em fazê-lo e espero que o tenham também em lê-lo. Grande abraço,

Neuman

Nas noites mais frias, dentre as almas mais geladas
Encontrava-se aquele ser, cuja vida malfadada
Conduzia seus passos na sombria madrugada

Só, por entre sombras, errava a criatura
Que desistira da vida, dentre tantas amarguras
Pensava sempre na morte, tanto a minha quanto a sua

Mas coragem não o move, só o medo que possui
E de todos os lugares, inclusive os que não fui
Nunca ouvi tanta estória, que a um homem atribuem

Uma lenda, quase um mito
Quando lembro sei o que sinto
Eu vi, juro, não minto!

Foi em um remoto interior
Que vivi aquele horror
Um encontro em dissabor

Era em maio, em festa santa
Não me lembro de qual manta
Já faz tempo, até me espanta

Senhoras, velhos, crianças,
Reunidos com esperança
Isso guardo na lembrança

Bandas, moças, fogos de artifício
Escondiam o indício
Do momento de suplício

Estava distraído, quase ébrio, aturdido
Confundindo meus sentidos
Fui ficando retraído

Então me indagou o vigário
Meu amigo temporário
Em um tom autoritário:

“Meu rapaz, o que tu sentes?
O que passa pela mente,
deste ser tão imprudente?”

“bebeste como um pedinte
quaisquer olhos que te fite
vê o mal que lhe atinge”

Respondi-lhe com impropérios
Depois com um ar de mistério
Comecei a dar meus passos, me perdi sem rumo sério

Foi no meio do caminho que encontrei aquela velha
Que sem uma simpatia me olhou um tanto séria
E narrou uma estória de terror e de miséria:

“Em meados deste tempo, numa festa como esta
Um encontro de amor, duas vidas bem modestas
Transformou-se em tragédia e hoje mora na floresta

Era um jovem bem bonito, encantou-se com uma moça
Conheceram-se na festa; o amor surgiu com força
Mesmo com o que ocorreu, até hoje tem quem torça

Ela, uma linda morena, a mais bela da cidade
Seu encanto era tanto, na ingênua e doce idade
Seu olhar malicioso, mas não carregava maldade

Ele, rapaz honesto, forte e trabalhador
Tinha um sonho em mente: queria ser doutor
E nada o fazia tremer, apenas aquele amor

O pai dela era ciumento, “Coroné” Paulo Nascimento
Prendeu a menina em casa, impôs-lhe um tormento
Era muito ambicioso; não aprovou o casamento

Combinaram então fugir, com a ajuda da empregada
Ia ser naquela noite, no meio da madrugada
Uma pedra na janela; uma corda amarrada

“Coroné” desconfiou; armou logo uma cilada
Pôs jagunços bem armados vigiando a estrada
Torturou a empregada com chicotes e facadas

O casal fugiu depressa, seu caminho era a fé
E quando se achavam salvos, o homem e a mulher
Foram presos em tocaia pelo próprio “Coroné”

O vilão ficou possesso e lançado em sua ira
Sacou do cinturão brilhante uma enorme carabina
Mirou-a para o casal e atirou só na menina

O rapaz desconsolado, ficou louco, atordoado
O pai da garota ordenou que ele fosse espancado
Um jagunço à pancada o deixou desfigurado

Todos acharam a morte do garoto evidente
Mas ele sobreviveu, se vingou daquela gente
Matou todos sem pudor, e depois ficou demente

Hoje vive nestes matos e em sua insanidade
Já matou muitas pessoas, gente de toda idade
Já matou velhos, crianças e rapazes da cidade

E por isso te aconselho, não te andes por aí
Com a noite assim escura, pode ele estar aqui
E não quero ver um moço tão formoso assim sumir”

Depois de ouvir a lenda, perdido naquela cena
Não pude conter meu riso: gargalhei como uma hiena
E a velha me olhou com um semblante de pena

Retomei o meu caminho, sem saber aonde ir
Procurei pela senhora que acabara de sumir
Em um piscar de olhos, como se nunca estivesse ali

Pensei no infeliz casal e fiquei meio deprimido
Seria verdade a lenda que a pouco tinha ouvido?
Fui pensando nos detalhes: “daria um belo livro”!

Sem perceber fui me afastando daquela pequena cidade
Não tinha mais nem um dinheiro, apenas a identidade
E a foto da minha noiva, carregada de saudade

Era também morena, como aquela da estória
Era também bonita, parecida uma joia
E naquele momento ficou presa na memória

Pensei em todos os momentos que ela esteve junto a mim
Botei a foto no bolso da camisa de cetim
E senti um calafrio que parecia não ter fim

De repente percebi que estava perdido
Afastei-me da cidade, só ouvia o zunido
Da festa da padroeira daquele povo esquecido

Ao tentar voltar e retomar o caminho
Notei naquele instante que estava ali sozinho
E ouvi estranho som que me causou arrepio

O mato ao meu redor foi ficando alvoroçado
Um grito seco e cruel fui ouvindo ao meu lado
Um bando de aves voou em movimentos assustados

Senti que fiquei pálido, o couro suando frio
Não podia mais conter o intenso calafrio
Meus olhos se encheram d’água, como gotas de um rio

Vi que alguma coisa vinha em minha direção
Tentei correr, mas não pude; virei e caí no chão
Nunca me imaginei naquela situação

Ouvi mais algumas vezes o grito aterrador
Minhas pernas não mexiam no instante de horror
Comecei a rezar em sussurros pro meu anjo protetor

Quando abri os olhos, vi sair do matagal
A criatura mais feia, parecia um animal
Tinha estrutura de homem, mas não era um ser normal

Era alto, estava nu
Em seus olhos o medo cru
Como os ventos gelados do sul

Seu rosto estava desfigurado
Como a lenda que eu havia escutado
Em minha crença estava errado

Realmente existia
Criatura tão sombria
Que do mato migraria

Sem nenhuma hesitação
Atirou-se em mim então
Com a fúria de um leão

Seu grito era de abalar
Sei, queria me matar
Talvez para poder se vingar

De seu destino medonho
Que num momento tristonho
Destruiu seu grande sonho

Tentei lançar algum grito
Mas por estar um tanto aflito
Nada por mim foi dito

A criatura de unhas enormes
Com seus “grunhidos” disformes
Rasgou-me de modo uniforme

Senti sangue em minha boca
E o homem de fúria louca
Lacerou a minha roupa

A foto de minha noiva foi a minha salvação
Com meu bolso rasgado a foto caiu no chão
E o ser abominável foi tomado em comoção

Ao ver a linda morena lembrou-se de alguma cena
E a fúria arrebatada foi ficando mais amena
Senti que estava salvo do tenebroso problema

Banhado seus olhos em lágrimas lembrou-se da namorada
Que havia sido morta pelo pai em emboscada
E que o jogou em vida amaldiçoada

Fui encontrado no outro dia; eu havia desmaiado
Não lembrava com detalhes o que foi passado
Só sei que estava com o corpo todo ensanguentado

Comecei a contar o que aos poucos recordava
Uns olhavam assustados; outros com uma leve risada
Vi ao fundo me olhando a velha da noite passada

Bradei: “falem com aquela senhora que me viu antes dos danos”
Alguém me respondeu: “deve estar havendo enganos
Esta velha é uma louca, já não fala há muitos anos”

No decorrer do dia foi-se avivando minha lembrança
Outras pessoas contaram mais estórias de matança
Daquela triste figura e de sua triste herança

Hoje são fortes as memórias desta estória de terror
Quando conto fazem cara ou de graça ou de pavor
Mas só sabe quem viveu a lenda do interior


Neuman Guimarães

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Primeiros passos

Paula vivia um momento difícil em sua vida. Típico da adolescência. Mas sua percepção de mundo era precoce. Ela podia discernir com facilidade aquele instante; sabia que era uma fase, que era passageiro. Porém o medo era seu companheiro. Mais presente do que os irmãos ou os colegas da escola. Na realidade, ela se destacava entre os demais de seu grupo social pela inteligência e surpreendente sapiência. Isso, de alguma forma, a afastava das pessoas. Seus talentos assustavam a todos. A ela também.

O que mais impressionava naquela garota era sua busca pelo saber, sua vontade de descobrir, de ultrapassar barreiras. Só que nada feito por Paula convertia-se em felicidade. Ela era arguta, curiosa, inteligente... e infeliz.

Sua mãe era sua melhor amiga, apesar de não manterem uma comunicação contínua. Cláudia também era observadora e há muito havia percebido que sua filha ainda não tinha encontrado o que procurava, e pior, não sabia o que estava procurando. Contatou certa vez um psicólogo, doutor Augusto, muito famoso na pequena cidade onde moravam. Paula não aceitou bem a idéia, mas com o tempo passou a conter sua rebeldia. Ela começava a gostar daquela conversa que parecia despretensiosa, sem nunca ter sido. No entanto, ainda faltava algo para achar o caminho da felicidade.

Foi então que a menina começou a sentir os efeitos da puberdade. A partir deste momento fixou um pensamento: o que faltava na sua vida era um amor. Queria experimentar aquele sentimento que fazia suas colegas ficarem com cara de bobas, segundo ela mesma descrevia. Parecia que um namorado seria a solução para seus problemas. Decidiu fazer mudanças em seu vestuário, o que causou certa estranheza em Cláudia. Maquiagens, sapatos, roupas, eram estes os objetos de sua cobiça agora. Paula estava virando uma mulher.

Para sua mãe foi uma agradável surpresa. Sua filha era bonita; muito bonita. Escondia-se antes atrás de roupas escuras e cabelos desgrenhados. Passou a chamar atenção por onde passava. Na escola não foi diferente. Contudo, aquela garota que a pouco era uma criança ainda sentia-se totalmente insegura quando o assunto era relacionamentos. Sua aptidão para matemática e filosofia ainda não havia convertido em sua vida social. Apesar da beleza, seus colegas ainda a achavam “estranha”; ela ainda estava deslocada entre os de sua idade. Seus namoros sempre começavam com data para acabar.

Com o passar dos anos as coisas não mudaram muito. Paula era agora uma mulher elegante, linda e inteligente, mas extremamente insegura. Seus relacionamentos estavam sempre fadados ao fracasso. Havia mudado para uma cidade maior e conseguido um emprego de alto nível, mas sua vida amorosa não decolava. Costumava lembrar-se dos conselhos do doutor Augusto, que acabou tornando-se uma figura marcante em sua juventude. Lembrava-se com nostalgia daquelas conversas e conselhos. Ele falava sempre nos primeiros passos e coisas parecidas, mas na realidade ela nunca entendera com clareza as advertências daquele homem. Naquela época não tinha maturidade para entendê-las. No dado instante, não tinha tempo.

A monotonia daquela rotina foi quebrada quando conheceu um rapaz que, de certa forma, iria mudar sua vida. Era um advogado recém contratado na empresa em que ela trabalhava. Elegante e bonito, era cobiçado pelas mulheres do local. No entanto, após saber da fama de garota complicada que era atribuída a Paula, o rapaz resolveu que queria sair com ela; queria possuí-la. Começou então a investir naquele futuro namoro.

Não demorou muito e Paula acabou seduzida pelos encantos do causídico. Não havia sido tarefa difícil, pois ela era uma mulher frágil e solitária. O advogado soube penetrar em suas emoções.

Durante um mês os dois saíram, divertiram-se, e ela passou a acreditar que desta vez encontrara o amor. Mas o medo ainda tomava conta de sua alma, e Paula não se entregou de vez àquela paixão. De alguma maneira, sua reserva a fez se sentir forte como nunca, e seus sentimentos tornaram-se melhor controlados. Passou a perceber como funcionava seu coração e como conduzir aquela ligação amorosa.

Seu mundo havia se transformado. Agora Paula sabia as direções que deveria tomar. Todavia, um fato iria alterar o rumo que sua vida parecia ter encontrado. Em uma noite chuvosa, após seu carro ter quebrado depois de um cansativo dia de trabalho, resolveu prosseguir a pé, pois estava já próxima de casa. Ao adentrar em seu bairro, viu uma cena que antes a deixaria deprimida, mas que lhe causou outra reação. Seu namorado estava embaixo de uma marquise, em fervorosos beijos com uma linda moça.

A ira tomou conta de Paula após perceber que ele a havia visto e esboçou, como se dirigido a ela, um sorriso que ultrapassava o sarcasmo e a ironia. Partiu para cima dele, pronta para desferir-lhe um golpe certeiro na face. Ele segurou o braço da agressora e a arremessou com força de encontro ao chão coberto de lama. O advogado saiu andando calmamente, puxando a garota que antes beijava e que agora se esforçava para entender o que estava acontecendo.

Paula ficou incontáveis minutos no chão, sentada, sentindo a chuva forte em suas costas e a lama em seu corpo. Não chorou nem deixou que a raiva tomasse conta de si. Apenas ficou parada, pensando em qual seria seu próximo passo. De súbito, uma mão senil estendeu-se a ela. Um senhor com uma negra capa de chuva e um vistoso guarda-chuva ajudou-a a levantar-se. Quanto ela o olhou nos olhos, percebeu que conhecia aquela figura. Era o doutor Augusto, que, por capricho do destino, havia se mudado para um bairro vizinho e também fora surpreendido pela chuva. Ele havia presenciado toda a cena. Os dois entrelaçaram os braços e começaram a caminhar. Augusto a olhou com ternura e disse:

- Você deu apenas o primeiro passo. Agora você já sabe o caminho!

sábado, 24 de julho de 2010

Radical

Praia do Futuro, final de tarde, alguns jovens jogando futebol. Peleja encerrada, sentam alguns à beira da maré, olhando o horizonte como a filosofar. São todos rapazes fortes, realmente atletas; não se conhecem muito bem, a não ser pelo encontro semanal proporcionado pelo futebol. Nunca pararam para uma conversa prolongada, mas no momento pareciam velhos confidentes. A paz que a natureza proporcionava naquele instante era indescritível.
Nesta contemplação, começaram a falar de seus esportes favoritos:
- Tenho praticado paraquedismo... a sensação de liberdade é algo que não consigo passar em palavras! Vocês precisam experimentar. Quando salto naquele espaço azul, parece que estou tocando na mão de Deus!
Outro rapaz, antes distraído, começou a se interessar pelo assunto:
- Então você também é um atleta radical! Eu tenho grande paixão por este tipo de esporte. Atualmente estou fazendo “rapel”... eu e mais alguns colegas iremos neste fim de semana. Alguém se habilita?
- Bom, eu não vou poder – respondeu um novo integrante do papo. Tomei um tombo praticando “down hill”; estou com o ombro um pouco dolorido... não viram o frango que tomei na pelada? Foi por causa disso.
- Certo, acredito – brincou um dos jogadores com um sorriso irônico.
- Eu gosto do alpinismo – entrou outro na conversa - me sinto o homem mais forte do mundo quanto consigo vencer um grande desafio.
Neste tema transcorreram-se horas. No entanto, havia um dos homens que não tinha pronunciado uma só palavra, mas contemplava o feito descrito por cada um com uma atenção hipnotizante e um brilho interessante nos olhos. Em dado momento, seus companheiros perceberam seu silêncio e o interpelaram:
- E você, amigo, não pratica esportes radicais?
- Pratico sim: sou professor de história em uma escola Estadual.
Todos se entreolharam e após alguns segundos balançaram a cabeça em sinal de concordância.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Nos tempos de criança

Estava em uma cidadezinha de Minas, visitando uns parentes, e resolveu sair para uma caminhada. Recordava os bons momentos que havia passado naquele lugar quando criança, aprontando peraltices com seus primos e amigos. Lembrou a vez em que se perderam na fazendo do avô, que ficava a poucos quilômetros dali, e quando foram surpreendidos “roubando” o trator do tio para umas voltinhas. Sem contar as travessuras vividas naquela bela cidade, que hoje contrasta o ar interiorano com as linhas da modernidade.
Andava perto da casa do seu Tomás, um velho senhor que pegava no seu pé quando garoto, e de súbito viu uma coisa que mexeu com ele: uma linda goiabeira, totalmente carregada de frutos maduros. Estava no meio de um quintal de uma velha casa, cercada de muros altos, mas era tão grande e frondosa que podia ser vista de longe. Chegou ao portão e pensou em pedir algumas goiabas ao dono da casa. Bateu palmas várias vezes, mas ninguém atendeu. Pensou em quanto tempo não comia uma goiaba direto do pé. Lembrou dos deliciosos sucos feitos por sua amável vozinha. Sucos de goiaba no final da tarde. Que saudade!
Bateu palmas novamente e nada. Olhou para um lado e outro e, não vendo ninguém, resolveu colocar o lado criança para fora. Saltou o muro com uma velocidade que até o surpreendeu. Verificou cuidadosamente se não havia algum cachorro bravio naquele local. Viu só um papagaio que fazia um terrível barulho, mas não falava uma só palavra que pudesse ser compreendida.
Caminhou vagarosamente até a árvore, retirou rapidamente o sapato e escalou galhas e galhas como nos tempos de criança. Perdeu a conta de quantas goiabas comeu. Estavam deliciosas. Tinham gosto de infância. Desceu - agora menos ansioso -, ajeitou a camisa amassada, abaixou-se para calçar os sapatos e quando levantou tomou um susto bizarro. Olhando para ele estava um velho... Muito velho! Olhava furiosamente, respirando ofegante. O “ladrão de goiabas” ficou totalmente rubro, em pejo. Pensava em que desculpa dar quando, observando mais atentamente, percebeu que conhecia aquele velhinho. “Seu Tomás?”, perguntou, ainda em dúvida. Neste momento o papagaio gritava sem cessar: “surra, surra”. O velho nada falou; simplesmente retirou o cinturão de couro que ajudava a segurar a quase apodrecida calça de pano e começou a desferir golpes contra o “peralta”. O homem, surpreendido, não sabia o que fazer. Ficou apenas observando aquele velho que não tinha forças para aplicar-lhe tal corretivo. Esperou então que a surra se completasse, retirou da carteira a maior nota que possuía naquele momento, entregou ao pobre velho e saiu caminhando, ainda envergonhado, em direção ao portão. O ancião ficou gritando ordens que ele não pôde compreender.
Ao sair da casa, agora achando graça do acontecido, concluiu: definitivamente era o seu Tomás.

sábado, 17 de julho de 2010

Futebol do povo e para o povo

Olá!
Um amigo me convidou para escrever em um blog que discuta o futebol além das quatro linhas.
O endereço é www.alemdarena.blogspot.com


Segue o primeiro texto que postei para ele. Abraço para todos!


Certa vez o Parreira, famoso personagem do futebol brasileiro e técnico da seleção brasileira à época, chegou ao Brasil após uma derrota para os argentinos, na casa dos hermanos. Ao sair do aeroporto, pegou um táxi para casa e foi imediatamente questionado de maneira crítica pelo motorista sobre a má atuação dos jogadores brasileiros naquela partida. O treinador respondeu com outra pergunta: “E sua família, está bem?” Claro que o técnico estava chateado e foi ríspido no modo em que tratou o taxista, mas ele não deixou de ter uma grande dose de razão. O futebol é emocionante, imprevisível, apaixonante, por isso tão amado. Mas é apenas um esporte. Não deveria ser colocado como prioridade extrema da vida, como algumas pessoas fazem. Muitos torcedores discutem, brigam, matam outros por causa do futebol. O que deveria ser um momento de diversão e relaxamento é levado tão a sério que se perde completamente a razão em determinados momentos.
Ao invés de usar esta energia para agredir seus pares, por que os aficionados pelo esporte bretão não canalizam seu vigor e paixão para “além da arena”? Será que a organização do futebol brasileiro não é tão importante quanto o que acontece dentro de campo? Esta passividade de quase a totalidade dos torcedores em relação a parte “burocrática” e organizacional deste esporte colabora com o controle exercido pelos cartolas e dirigentes maiores do nosso querido futebol. O jogo da bola na rede é democrático e restrito ao mesmo tempo.
A participação dos torcedores, não só nas arquibancadas, mas também na elaboração dos campeonatos, na resolução das questões mais críticas, nas discussões relevantes tornaria o esporte mais amado do Brasil em algo realmente pertencente à nação brasileira. E é isso que se espera dele: que seja completamente do povo e para o povo.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O sapato

Dia desses estava eu cantarolando “Raul”, que narrava em uma de suas músicas seu peculiar problema com sapatos: “eu calço é 37; meu pai me dá 36...” e lembrei-me de uma desventura vivida por outro baiano, este amigo meu. Estava ele, como rotina, dirigindo-se ao almoço em um shopping perto de seu trabalho. Despreocupado, como de costume e de berço, não podia prever o contratempo e a cólera que enfrentaria naquele dia.

Chegando ao seu destino e supondo o que comeria percebeu uma leve brisa entre os dedos do pé. O solado de seu sapato havia descolado, literalmente. O que fazer? Não podia perder tempo: entrou na primeira loja de calçados que encontrou em seu caminho. Nem teve tempo de escolher o novo par e um solícito vendedor o abordou – se me permite a licença, o verbo “abordar”, em alguns dicionários, tem como um de seus significados “assaltar, saltando a bordo do navio inimigo”; logo a metáfora será revelada – e aproximando-se rapidamente fez uso do clichê: “Em que posso ser útil?”. Após uma breve explicação do pequeno infortúnio, o rapaz trouxe alguns pares de sapato que estavam em promoção.

Perdidos alguns minutos na escolha, sobrou apenas uma opção, pois, a bem da verdade, os outros modelos eram de gosto duvidoso.

- Qual é o seu número? - perguntou o vendedor.

- Calço 40.

- Bom... O senhor realmente gostou deste modelo, ou gostaria de ver outros sapatos?

- Só gostei deste!

- Certo... O senhor me aguarde só um minuto, vou buscar seu número em nosso estoque, concluiu o vendedor, estranhamente agitado.

Decorridos “vários” minutos, chega o tão esperado par em uma caixa lacrada, seguido de uma indagação:

- Posso embrulhar?

- Claro que não, vou calçar agora, ou não te expliquei a situação? – retruca o baiano.

Ansioso para resolver o problema e sem parar para conversar, transação efetivada, segue seu rumo meu amigo, com sapato novo no pé e velho na sacola.

Ao retornar do almoço, sentia uma dor insuportável em seus pés. Tirou os sapatos, conferiu o número, olhou para um colega que estava ao seu lado e bradou:

- “Ó pá isso”!!! “Fi duma...”!!!

O número do calçado havia sido raspado, mas ainda era possível ver o número trinta e oito de modo turvo.

- Se eu fosse você, iria agora mesmo na loja onde comprou estes sapatos para acertar as contas com o vendedor – disse o colega de trabalho, tomando as dores.

- Que nada – respondeu em um misto de indignação e conformismo - vou dar este sapato pro primeiro “lavador de carro” que encontrar... tem Super Bond aí?

O aluno mal-vindo

Ao chegar à escola noite passada, com a aula preparada e a matéria na ponta da língua, percebi, logo na entrada, um bueiro destampado. Não sei por que isso me acontece, mas toda vez que vejo um bueiro aberto me lembro de ratos; tenho a sensação que daquele buraco vai, inevitavelmente, saltar um asqueroso rato.

Comecei a aula como de costume, fiz a chamada, conversei com os alunos, tudo transcorrendo normalmente. Por volta da metade de minha corriqueira preleção, notei um ser estranho passando em frente à sala e pensei: “é um rato”. Disfarcei e olhei para fora, a procura da confirmação de minha suspeita. Nada encontrei. Prossegui, explicando para a classe a importância da leitura e completei o esclarecimento com uma breve interpretação de texto. De súbito, olho para porta e vejo aquele ser que preferia não ter avistado: o rato. Estava ele, eu juro, me observando, como se quisesse dizer: “professor, desculpe o atraso; o senhor me dá a licença para assistir o restante da aula?”

Certamente com um ar desconfiado, olhei para a turma, que neste momento estava concentrada em um exercício, e constatei que ninguém havia percebido a presença daquele intruso. Caminhei rapidamente em direção à porta e tratei de enxotá-lo o mais breve possível. Logo após olhei, procurei, e acreditei que o bicho havia ido embora.

Continuei minha aula e esqueci o assunto do roedor. Após mais algumas explicações e conversas, passei um novo exercício, desta vez para que treinassem a produção textual. Vi que a turma concentrou-se na lição e, como propus um tempo maior para a realização da tarefa, resolvi me sentar um pouco para descansar as pernas após um longo dia de trabalho.

Distraído estava, quando vejo novamente o rato na porta da sala. No entanto ele não parou para me solicitar a licença: entrou desenfreado classe adentro. Naquele instante, meu coração disparou; pensei logo no alvoroço que seria se alguém percebesse a presença do metediço. Pensei em avisar a turma e preparar os homens para uma caça impiedosa. Mas, no momento que a ideia passou pela minha mente vi o diretor passando em frente à sala e achei que ele não ficaria muito contente com um “safári” fora de hora. Resolvi ficar quieto, torcendo para o animal não ser descoberto.

A partir daquele momento, fiquei olhando insistentemente para o chão, a procura do paradeiro da criaturinha. Não sei se alguém percebeu, mas perdi a concentração na aula que estava ministrando e permaneci feito um bobo com a cabeça abaixada. Vez ou outra via a sombra do rato passar de uma carteira a outra. “Rato filho da...”, pensava. Para minha sorte a aula estava em seu final e o pânico não se instaurou naquela noite. “Foi realmente sorte”, concluí.

Fui para casa lembrando-me do episódio e rindo sozinho da situação. Na manhã seguinte joguei no bicho: gato na cabeça!

Hipocondria

Estavam os dois, mais ou menos meia hora, com olhares disfarçados, loucos para trocarem palavras, mas sem coragem. Seriam os últimos a serem atendidos naquela tarde pelo doutor Cláudio Moura, clínico de renome em Brasília. De repente, ela resolve quebrar o gelo:

- Ótimo este médico, não?

- Gosto muito - respondeu ele um pouco sério, mais por timidez do que por personalidade.

- Trato-me com ele há muitos anos, continuou a bela moça.

- Eu também; faz tempo que estou me tratando.

- E o que o senhor tem?

- Me chame de você. Bom, no começo era uma dor de cabeça que não me largava...

- Enxaqueca! Também sofro com ela; é um sacrifício conviver com essa doença.

- É verdade. Mas este médico é muito bom, ele sabe de tudo um pouco, a senhora deve ter percebido.

- Me chame de você também... percebi sim, inclusive tenho sentido uma dor terrível no estômago e vou pedir para que ele examine.

- Aposto que é gastrite! Eu tenho também; acho que é por causa da enxaqueca. A gente vai ficando nervoso e começam as dores no estômago.

- Pode ser... realmente tenho andado nervosa. Dia desses, dei um murro na parede por causa do meu chefe. Aquele homem me mata de raiva! Quase quebrei a mão; até atacou minha tendinite.

- Nossa, a senhora, digo, você é brava, heim? Também tenho andado um pouco nervoso, mas acho que é por causa de uma gripe que me pegou. Meu nariz só vive entupido, não consigo nem respirar direito.

- Verifique bem isso, às vezes pode ser uma rinite alérgica. De vez em quando tenho algumas crises.

- Hum... vou ver com o doutor. A propósito, percebi que seu olho está um pouco vermelho. Talvez fosse bom você pedir ao médico para examinar.

- É conjuntivite. Já verifiquei com o meu oftalmologista. Mas pode ficar tranquilo que não é transmissível; é alérgica também. Acho que foi devido ao lápis que passei no olho; coisas de mulher.

- Alergia é mesmo um problema sério. Eu mesmo não posso nem chegar perto de cachorro ou de gato que começo a espirrar.

- Até que eu não tenho problema com os bichinhos. Não posso é comer camarão que fico toda empolada.

- Sabe, você é uma moça muito simpática.

- Também gostei muito de você. É muito atencioso.

- Quem sabe, ao sairmos daqui, podemos tomar um chope para nos conhecermos melhor?

Pausa.

- Pode ser água? É que eu estou com um probleminha nos rins...

Quem é que vai pagar por isso?

No rádio tocava uma música antiga do Lobão. O refrão, que dizia “quem é que vai pagar por isso?” me fez refletir sobre coisas antigas e atuais. Primeiro lembrei-me de ter ouvido alguma vez que ele havia feito esta música como uma brincadeira, mas as pessoas levaram-na a sério e ele resolveu não tocá-la por um tempo. O que talvez o cantor não tenha percebido é que esta é uma indagação tão pertinente (antes e sempre) que não há como não levá-la a sério.

As mudanças climáticas que temos acompanhado, estupefatos, fazem com que as pessoas procurem mais os culpados do que as soluções. E provavelmente achar os culpados seja a primeira solução. Infelizmente, o número de responsáveis é bem maior que o de inocentes. É só pararmos para pensar: você, seus amigos, seus parentes, seus colegas de trabalho, enfim, quantos fazem coleta seletiva, não jogam lixo pela janela do carro, não fumam, preocupam-se com o óleo de cozinha... Culpamos as grandes indústrias irresponsáveis e algumas das grandes potências econômicas (e são realmente culpadas), mas retiramos de nossas costas os sacos de lixo e o peso de nossas consciências. E então assistimos indiferentes as chuvas irregulares e abundantes em algumas regiões e que causam transtorno e medo aos habitantes das pequenas e das grandes cidades.

Muitas vezes não fazemos a nossa parte e cobramos de nossos governantes soluções para os alagamentos causados pelo nível pluvial exagerado para a época. Descobrimos, então, que a instabilidade não é apenas climática. A capital de nosso país, por exemplo, passa também por um período nebuloso. Comprovamos que uma imagem vale mais que mil palavras; ou mais do que milhões... Nossos políticos estão tão preocupados em esconder dinheiro nas meias, bolsas e cuecas que já não podemos contar com eles para nos ajudar a lutar contra um problema tão grave. E assistimos, novamente estupefatos, a tempestades que assolam a nossa fé, aumentando a desilusão já tão evidente.

Você, leitor, deve estar se perguntando se há alguma coesão neste texto; o que há em comum entre as mudanças climáticas e os escândalos políticos do Distrito Federal? É simples: os dois nos fazem perguntar quem é que vai pagar por isso.

Páscoa

- Mamãe, coelho não bota ovo, certo?

- Que bobagem é essa, menino?

- Mas mãe, não é o coelho da Páscoa que traz os ovos?

- Ah, então é isso...

- Por que não existe a galinha da Páscoa?

- Ô garoto, você já fez a lição de casa?

- Não.

- Então pare de me perturbar com essas suas perguntas bobas!

- Você não sabe, né mamãe?

- Claro que eu sei...

- Sabe não.

- Me respeita, menino! Sei sim: é porque o coelho é um símbolo.

- Símbolo de quê?

- Um símbolo de... de... um símbolo da Páscoa, oras! Você não aprendeu isso na escola?

- Não.

- Pois deveria. Semana que vem terei uma conversa com a sua professora.

- Fiz a mesma pergunta para a professora e ela me enrolou igual a você.

- Eu não estou te enrolando, garoto. Realmente está faltando um pouco de respeito!

- Mãe, eu só quero saber o que tem a ver o ovo e o coelho.

- Tem tudo a ver. Afinal, os dois são símbolos da Páscoa.

- Por quê?

- Acho que alguém aqui quer ficar sem chocolate...

- Mas mãe...

- Mas nada, menino. Este assunto está encerrado. É um feriado importante e devemos seguir as tradições que são passadas de geração em geração.

- Tá bom, tá bom, já entendi. E o que nós vamos fazer neste feriado? Celebrar a Páscoa?

- Não, acho que vamos viajar. Eu e seu pai andamos muito cansados...

Ser pai

Não adianta. Você pode ser expert em vários assuntos. Ler muito; estudar exaustivamente. Pode ser uma pessoa bem informada, esclarecida. Pode discursar com maestria sobre política, economia, astrologia, culinária, física nuclear... Mas existem certas coisas que só a experiência pode ensinar. Você tem que viver aquilo para dizer como é!

Um exemplo é ser pai. Imaginamos milhões de coisas e situações que podem ocorrer quando a paternidade nos agraciar. Mas é tudo diferente. Para começar, somos invadidos por uma confluência de emoções. Felicidade imensurável, medo inegável, paz de espírito, receio do futuro, falta de paciência, ternura... É impressionante como a vida muda. A sensação é de que somos arrancados da vida anterior e colocados em uma nova. Não que isto seja ruim. O problema é você achar que está totalmente preparado. Será que alguém que é papai pela primeira vez está plenamente pronto?

Para começar, por mais que os médicos digam “vocês é quem mandam no bebê, não ele em vocês”, como não ceder aos pequenos caprichos dessa criaturinha divina? Há também os momentos de cansaço extremo. Principalmente no primeiro mês. Claro que as experiências variam de criança para criança. No meu caso, acho que no início eu poderia ser facilmente confundido com um zumbi, desses de filme do José Mojica Marins.

Com o passar dos meses novas preocupações e indagações vão surgindo. “Doutor, é normal a criança chorar tanto?”. “Doutor, essa manchinha aqui, bem pequenininha... é, essa aí... normal?”. “Doutor, o certo é o bebê acordar uma, duas ou três vezes durante a noite?” As broncas do pediatra acabam sendo inevitáveis e nos acostumamos a ouvir que tudo isso é coisa da nossa cabeça!

Um dia desses estava conversando com um amigo que se casou na mesma época que eu e perguntei se ele não pretendia ter um filho. Ele sorriu e disse que não estava disposto a doar seu tempo e principalmente não queria aumentar substancialmente seus gastos. Este amigo foi tão enfático em suas palavras que eu nem quis contra-argumentar. Ah, se ele soubesse que quando o bebê sorri para você não há dinheiro que possa pagar! E o tempo? O tempo para...

Bom, eu poderia escrever muitas e muitas páginas sobre o assunto, mas neste momento minha filhinha está aqui no meu colo e decidi encerrar por aqui!

Eros e Psique

Um dia desses estava eu conversando com um grupo de adolescentes, alunos meus, quando surgiu um tema que nunca sai de moda: o beijo. Na realidade, fui eu quem puxou o assunto após observarmos em um livro uma famosa escultura de Antônio Canova que retratava o amor que uniu Eros e Psique; segundo a mitologia grega, eles se apaixonaram e viveram felizes após a permissão de Zeus para o casamento entre uma mortal e um deus. Não antes de enfrentarem grandes provações, típicas dos maiores romances cinematográficos.

Expliquei aos estudantes que aquela escultura havia causado certo desconforto na época e eles não entenderam o porquê, pois não viram nada demais na obra. Aliás, o assunto do beijo também não pareceu nada desconfortável para aqueles meninos e meninas ali presentes. Segundo eles, o ato de beijar é visto hoje como algo quase que banal. Não foram bem estas as expressões usadas, mas garanto que foi a impressão que me deixaram.

Talvez o que mais me surpreendeu não foi o fato deles dizerem que “o beijo poucas vezes envolvia sentimento”, afinal de contas estamos na era do “ficar”. O que me assustou foi a falta de sentimentos que envolvem um relacionamento entre duas pessoas, segundo eles deixaram transparecer na conversa.

Percebo que a maioria das pessoas carrega um pouco de saudosismo quando se fala de romantismo. Nossos pais estão sempre dizendo “no meu tempo as pessoas eram mais românticas”. Hoje ouço minha geração dizendo “no meu tempo não era como hoje”... Parece que não percebemos que as coisas mudam mesmo, mas confesso que no dia daquela conversa fiquei pensando se daqui a alguns anos o sentimento do amor, do romantismo irá se apagar por completo nas pessoas.

No outro dia, na mesma turma, percebi um ar de tristeza entre todos. Principalmente em uma menina sentada no cantinho da sala, com os olhos marejados. Aos poucos fui sondando os estudantes para descobrir o motivo da melancolia. Eles então me contaram que um dos garotos da turma iria mudar de cidade e, consequentemente, de escola. A garota que tinha os olhos cobertos por disfarçadas lágrimas era namorada dele e os colegas compadeceram-se com a dor dela. Então senti uma pontinha de alívio, pois percebi naquele momento de aflição que o sentimento ainda existe nos coraçõezinhos deles. A forma de externar é diferente de pouco tempo atrás, mas que existe, existe! Acho que Eros (o cupido) sempre encontra novas formas de se juntar a Psique (a alma).

Anjos

Eles estavam atrás dele. Seu único refúgio naquela noite obscena era a velha e imponente igreja circundada pelo bairro desprotegido. O grande portão de madeira estava apenas encostado. Dentro, só a luz das incontáveis velas iluminavam o local. Ele queria rezar, mas não sabia. Tinha que encontrar o padre; aproveitar o refúgio e confessar seus pecados. Havia matado um homem. Havia matado um homem naquela mesma noite. Por isto estava sendo perseguido. “Mas foi legítima defesa”, pensava, tentando suprimir a culpa que tomava conta de seu caráter. E realmente agiu em legítima defesa. Mas, naquele instante, não fazia muita diferença. Eram bandidos sórdidos, que o importunavam desde que sua família faliu e precisou morar em um bairro desprovido dos confortos aos quais estava acostumado.



O templo parecia deserto. O silêncio confortante do lugar trazia calafrios ao mesmo tempo que tranquilidade. Não sabia se deveria gritar ou permanecer calado, esperando que alguém viesse ao seu encontro.



Ouviu vozes na rua. Eram seus caçadores. Sentiu um arrepio típico na espinha. Aproximou-se do altar, como se estivesse sem rumo, não sabendo onde se esconder. Ao olhar a sua direita, percebeu a imagem de um santo. Uma linda imagem de um santo. Robusto, belo, impávido. Não sabia de quem era o ser de instante onipresente. Os olhos da escultura pareciam fitá-lo de forma misericordiosa. Ergueu as mãos sujas de sangue, objetivando tocar o rosto da estátua. Queria apenas tocá-la. Sem sentido. Só tocá-la. Como se pudesse absorver todo perdão que sua alma solicitava antes de seu derradeiro momento de vida.



As vozes que vinham de fora não cessavam. Não havia mais nada a ser feito. Não havia lugar para onde ir. Sentiu então que sua vida terminaria ali, daquela covarde maneira. Seus algozes entram então pela porta da frente, arrebentando-a. Seus sorrisos obscenos alavancaram o medo do fugitivo. Era o fim. Olhou novamente para o santo, como se pedisse clemência, e tocou em sua fria face de gesso.



Foi neste instante que um vento intenso, poderoso, tomou conta de todo o local. O pavor instalou-se naqueles rostos que ocupavam a igreja. Bancadas de madeiras, cadeiras, castiçais voavam de um lado a outro, jogando a todos no chão. Figuras pálidas, quase transparentes, deslocavam-se sobre as cabeças dos apavorados homens. Eram apenas silhuetas, mas o rapaz que fugia podia jurar que eram anjos vestidos de azul. Para os perseguidores, pareciam fantasmas que os atacavam anunciando suas mortes. Em todo canto havia um. No altar, nos vitrais coloridos, em todas as direções.



No auge do tumulto, a figura do padre surge em uma das portas internas da igreja. Ele presencia, estupefato, aquele inimaginável movimento. Os bandidos, atordoados, conseguem se livrar das correntes de ar que circulam e correm como nunca para fora do templo. Quando o último deles deixa o local, a ventania insana é interrompida imediatamente. O sacerdote olha a sua volta e vê a igreja totalmente destruída, enquanto abraçado a uma imagem, encontrava-se um rapaz ensanguentado. Sem hesitar, o padre fala: “Vá embora, meu filho; vá com Deus”. E, também sem rodeios, o condenado segue seu caminho.

História de um trabalhador

Hoje parei para observar os peixes que ficam em uma fonte próxima ao prédio dos Correios. É tão raro eu parar para ver alguma coisa. Sou trabalhador. Assim como milhões de pessoas. Não tenho tempo para observar nada. Mas hoje resolvi olhar as coisas ao meu redor. Tenho certeza que vou levar uma bronca do patrão... Isso, se não perder o emprego. Mas hoje não quero trabalhar. Nem lembro qual foi a última vez em que fiquei um dia sem fazer nada. Acordei pensando se vale a pena trabalhar tanto. Não estou conseguindo realizar meus sonhos. Ainda não comprei minha casinha, nem meu carro velho. Não vejo meus pais há quinze anos. Não pude ver meu irmão antes que o coitado morresse. Não sei mais quantos sobrinhos tenho.

Só sei que meus filhos precisam de mim, apesar de nem sempre eu poder ajudar. Nem sempre estou com eles na hora em que necessitam de carinho e atenção. Nem sempre. Qual será o motivo que me faz seguir em frente? Tem horas que sinto tanta saudade da minha família... Sei que deveria passar mais tempo com eles, mas as contas não deixam. É o aluguel, as compras do mês, o material escolar dos meninos, remédio do mais novo, empréstimo com agiota. Se eu não tivesse sido assaltado mês retrasado não precisaria ter pego dinheiro com aquele agiota. Por que será que existem pessoas tão ruins no mundo. Trabalho tanto... Preciso tanto daquele ordenado que chega de forma tão suada! Dizem que é culpa do governo, da sociedade, de não sei mais quem. Mas não acho que a solução seja roubar o pouco que as pessoas têm. É preciso lutar sempre. Acho que esta é a melhor solução.

Eu, por exemplo, voltei a estudar. Saio do serviço e vou direto para a escola. Só não sei o que está sendo mais difícil: a saudade da família, o cansaço ou a dificuldade para aprender tantas coisas novas. E eu que achava que não havia mais nada nesta vida para aprender! Mas uma coisa eu tenho que confessar: como é gostoso se sentir capaz, inteligente, guerreiro. O melhor de tudo é a esperança que voltar à escola me resgatou. Sem contar que agora sei que não sou apenas mais um no meio dessa gente toda. Tenho alma, tenho vontade. Aí me lembro da força que me faz seguir, que me faz ter esperança, coragem para trabalhar mesmo enxergando os sonhos tão distantes. É a fé. Lembro também dos meus filhos, minha mulher, meu futuro e me vem na cabeça a frase de um tal de Albino Teixeira, dita por meu professor: “A morte do homem começa no instante em que ele desiste de aprender”. Vejo então que é preciso aprender sempre. É preciso lutar sempre. E chego a conclusão que vale a pena sim. Olho para o relógio e decido que ainda dá tempo de chegar ao trabalho. Chegou a hora de continuar a batalha.

Central de atendimento


- Central de Atendimento, bom dia!
- Bom dia, meu filho. Pode me dar uma informação?
- Claro senhora; qual seria sua dúvida?
- Gosto muito de ligar pra vocês porque o pessoal daí tem muita paciência.
- Que bom que a senhora gosta de nossos serviços. Em que posso lhe ser útil?
- Vocês devem receber muitas ligações por dia, heim?
- É verdade, mas é nosso trabalho.
- Tem certeza que não estou te incomodando?
- Claro que não. Pode fazer a pergunta.
- Ontem liguei pra vocês. Não foi você quem atendeu?
- Senhora, são muitas ligações por dia... não sei lhe responder!
- Bom, mas foi uma pessoa muito educada; deve ter sido você mesmo. É um rapazinho educado.
- Sim, mas em que posso ajudar a senhora?
- É uma dúvida que eu tenho, não sei se vai saber me responder?
- Pergunte...
- Sabe o que é?
- Nem imagino!
- É que minha pensão está atrasada. Você não sabe quando sairá?
- Ocorreu um problema técnico na folha, mas na semana que vem sua pensão será depositada.
- Você não sabe o dia?
- Não, senhora. Infelizmente não nos foi passada a data.
- Será que vai sair na Terça?
- Não sei, infelizmente não nos foi passada a data.
- Pode ser na Quarta, né?
- Não sei!
- Tem muita gente ligando pra vocês?
- O dia inteiro.
- Realmente o pessoal aí tem muita paciência.
- E como!
- Então foi um problema técnico?
- Foi!
- E vai ser depositado semana que vem?
- Sim.
- Você não sabe mais ou menos o dia, né?
- Não tenho a mínima idéia, minha senhora!!!
- Então tá. Muito obrigada pela sua atenção.
- Disponha, até logo!!!
- Tchau. Mas quer dizer que vocês não têm nenhuma informação pra me passar...
- Mas eu passei todas as informações!
- É realmente muito difícil! Nunca preciso dos serviços de vocês e quando há uma necessidade vocês não fazem nada! É um absurdo! Este país não vai pra frente! Entra governo, sai governo e tudo continua a mesma coisa! Aonde vamos parar! Alô? Alô?!? Nossa, acho que caiu a ligação... Amanhã ligo novamente.



Neuman Guimarães

CRÔNICAS DE UM PROFESSOR


Sempre tive como hobby a escrita. Resolvi agora compartilhar algumas de minhas histórias com meus amigos, alunos ou a quem possa interessar. Sejam todos bem-vindos ao maravilhoso mundo da literatura. Mundo sem fronteira, sem limites...

Neuman Guimarães